por Daniela Filipe Bento
Por um caminho para o futuro, construído em cima de um passado e um presente mais justo e igual.
Caminhar é um exercício. Caminhar é um exercício constante. Caminhar é um exercício constante e, muitas vezes, assustador. Quando caminhamos pelo espaço, muitas vezes vemos os nossos percursos com alguma clareza. Sabemos que de um ponto a outro passamos por um percurso que podemos reconhecer, conseguimos prever onde estamos a cada passo. Caminhar no tempo, pelo contrário, muito frequentemente traz-nos dúvidas e medos. Emoções que se sentem por um passado marcado, por um presente em trânsito e um futuro desconhecido.
Caminhar é um processo. Caminhar é um processo de escuta. Caminhar é um processo de escuta e auto-aprendizagem. Caminhar no espaço é reconhecer os espaços que nos rodeiam. Caminhar no tempo é escalar o futuro e descobrir os momentos que passarão a marcar o nosso passado.
Estou a pouco menos de meio caminho de uma vida, mas continua a ser um desafio. Continua a ser uma interrogação. Onde estou e para onde vou? Qual o meu destino? Qual o meu percurso daqui a mais meia vida? Questões mais profundas acompanham o meu tempo. Do passado ao futuro.
Contudo… gostava que estas perguntas estivessem apenas e só no campo da profundidade interior, da auto-reflexão e da auto consciência.
Porém, não estão.
Estão, também, a um nível sistémico, estrutural. O meu futuro não depende só da minha realidade, mas da que se cria à minha volta. Não somos imunes à passagem do tempo e aos efeitos do mundo que nos rodeia. A falta de expectativa e projecção é um problema comum, uma dificuldade de quem vê a sua vida condicionada logo no seu início. Se no nosso princípio não querem a nossa existência, como irão querer a nossa existência após uma vida? Se no nosso começo não conseguimos ter condições para uma vida digna, como iremos esperar ter condições para tal, num futuro?
Nós somos, enquanto comunidade trans, não-binária, o produto dos nossos questionamentos, das nossas irreverências e das nossas subversões.
Somos produto das nossas vivências mais ou menos difíceis, mas por quanto, sempre invisíveis e apagadas da sua existência. Invalidadas, maltratadas e cansadas, as nossas vidas não são feitas para crescer e existir na sua completude. Apenas, em sua parte, enquanto estratégia mercantilizada para produzir em nome do capital. No fim… não sabemos que condições teremos ou o que o futuro nos trará.
A velhice é um ponto.
Caminhar para uma idade futura e pensar que muitas pessoas não o conseguirão fazer em consequência de uma sociedade transfóba a nível institucional, social e estrutural, traz consigo diversos medos. Teremos condições para viver? Será mais tranquilo? Teremos espaço para continuar a sentir amor? Teremos espaço para continuar a crescer? Mesmo quando nos dizem que, a partir de certo momento, não vamos conseguir aprender mais nada. Mesmo quando nos digam que as nossas identidades não existem.
A velhice assusta-me. Assusta-me porque é algo que não consigo evitar. Não é como navegar no espaço, podemos parar e voltar para trás. No tempo não, não podemos voltar para trás para tentar novamente. Fazê-lo é ocupar mais uma fatia desta dimensão. Fazê-lo é ter mais medo que não funcione outra vez, outra vez e outra vez. A velhice embrutece-me. Embrutece-me porque nas condições que temos, tenho de o fazer. Embrutecer. Tenho de conquistar espaços e tempos, tenho de conquistar emoções e ações. Tenho de continuar a conquistar um espaço e um tempo que deveria ser meus por definição.
Pergunto-me, até quando vou ter de lutar para conquistar um espaço na vida? Um espaço para uma vida digna e saudável.
Um espaço que me permita viver no tempo. Pergunto-me, até quando vou ter de sobreviver para não morrer? Uma sobrevivência atabalhoada pelos maus estares das agressões que recebemos – seja directa ou indirecta. Pergunto-me, mas não me pergunto só. A nossa comunidade pergunta em uníssono para onde vamos? Para onde nos levamos? Para onde queremos ir? E não se trata de deslocar-nos no espaço, mas entender como será o nosso futuro: será que estaremos com vida?
Ainda me faltam alguns anos para lá chegar, mas não deixo de ter receio de como será. Numa sociedade cada vez mais individual, onde o capital estimula essa individualidade, pergunto-me como haverão condições materiais para que cada pessoa da nossa comunidade tenha um acesso a uma velhice saudável. Numa sociedade que se capitaliza o autocuidado e auto empoderamento, onde tem lugar a colectividade? Onde cai a responsabilidade dos que nos rodeiam e da sociedade que nos oprime através de uma série mecanismos de exclusão?
O mundo é responsável, não cabe a cada pessoa lutar sozinha para ter uma vida e um futuro digno – principalmente quando falamos em grupos que estão nas margens e que lutam diariamente para sobreviver. Não exigimos nada impossível, apenas condições de vida dignas.
A velhice continuará a ser um ponto.
Viver nas dissidências é questionar estruturas fundamentais da construção das identidades, questionar os seus alicerces, mas e no futuro? Como será para gerações que nos seguem? Tenho estima por todo o trabalho que foi feito antes de mim e do qual hoje usufruo. Uma estima que atinge as pessoas que vivem agora em primeira mão o envelhecimento.
Como é que nós, enquanto comunidade e colectivo, podemos facilitar garantir condições para as pessoas das gerações mais novas? Como é que podemos assumir esse compromisso? Como fazemos? Não há uma resposta fácil tendo em conta a multiplicidade de vivências e a limitação do nosso imaginário que tende a pensar hegemonicamente. Não é fácil criar projecções para o futuro de uma forma interseccional. Há diferenças subtis, há recusas e caminhos a serem fechados.
A velhice continuará…
O tempo não escapa a ninguém. O tempo flui num sentido, não nos dois e, por isso, a velhice continuará a atingir as pessoas que chegam a determinados momentos da sua vida. O cansaço de uma vida de constante luta estará lá, bem como a alegria de ter consciência do seu próprio percurso. A velhice continuará a mostrar-se implacável com as pessoas, continuará a ser motivo de discussão durante muitos e muitos mais anos. Com os progressos e regressões políticas contínuas, ninguém tem a certeza de como será. Mas é nos dias de hoje que precisamos fazer. É nos dias de hoje que precisamos de reivindicar os nossos direitos e a nossa humanidade. Porque a velhice continuará… e precisamos deixar o terreno mais confortável para quem chega e para quem necessita.
Não podemos ser assistencialistas da velhice, mas devemos criar mecanismos à priori que criem as melhores condições para todas as pessoas, incluindo grupos nas margens.
Por fim…
… escrevo este texto na esperança de ser escutada (lida) e que haja mais pessoas com vontade em fazer diferente, de criar condições para quem nos suceda. Entender a multiplicidade de vivências e experiências.
Legislar não chega, a justiça não chega, a saúde não chega, a escola não chega, o emprego não chega… É preciso ter consciência e criar mecanismos sociais e colectivos mais efectivos
Estaremos aqui, e continuaremos aqui…
… porque todas as pessoas merecem uma vida digna, em qualquer etapa da sua vida.
… porque na velhice nós vemos o futuro, mas também o passado e o presente.
… com esperança.
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Daniela Filipe Bento
Natural do Cartaxo, Portugal, aos 18 anos embarca numa viagem até Lisboa onde inicia a sua exploração identitária e política. É aqui que se descobre dissidente em vários eixos identitários, contestando e provocando as normas sociais vigentes que atuam na transversalidade da vida. Vem participando em vários debates, palestras e rodas de conversa procurando sempre um debate crítico e construtivo desde uma perspectiva interseccional e transfeminista.