por Rapha Dutra
Ao escrever quero apossar-me do é da coisa. […] Quero captar o meu é (1). Desconhecido como fundo do mar, o conteúdo desse texto se faz na mudança. Decido de imediato não saber do que irei falar, nem sequer do que falarei, porque – me permitam dizer – foi por não saber que cheguei aqui. Não sabendo que percebi as verdades, que resguardo a todo tempo o direito de não serem absolutas e, talvez, nem sequer verdades. Existem as mentiras verdadeiras, afinal.
Peço, porém, que no fundo desse mar, se deixe levar pela deformação do som; não o que ele é – o que ele é mesmo, é impossível. O que ele é, é deformado. A esperança de que fora d’água ele soe diferente é a coisa toda que impede o aqui e agora ser o objeto da apreciação. O ruído é tudo que posso me comprometer a ofertar. Então, repito, escuta o borbulho ou o apito do silêncio. Ou nem escute nada, desde que não escutar seja assumido e você seja capaz de dizer – não escutei.
As páginas a seguir serão feitas sem fronteiras, que para o texto posso chamar de capítulos. Poucos lerão antes, uma vez que guardarei isso até hora que seja possível a insegurança do tanto que estou disposta a por aqui, mas caso você esteja diante desse texto dividido em capítulos – ou outro nome melhor que eu achar pelo caminho – saiba que isso aconteceu depois, quando eu sentir que sou capaz de encontrar fatias nesse bolo; ou de quando forçadamente arrancar os bocados para poder dizer que esse corpo tinha uma forma. De qualquer forma, aviso: no agora, não consigo dividir nada. Vou falar de um inteiro.
Esse texto é essencialmente inventado. Mas acostado nos ecos das vozes que o encontrem, afinal a gente aprende a falar escutando. A sua relevância deixo para quem lê; pode ser que seja considerado nada ou alguma coisa. Para mim já tem valor do tempo, que por sua vez talvez seja nossa única e verdadeira moeda. A moeda intrínseca, que sempre decidimos trocar, dar ou receber; o resto é invenção. Numa vida incerta, aqui deixo horas e horas na esperança – e às vezes até a desesperança e a vontade de apagar tudo – de que seja algo.
– Meu deus, o que eu digo? Isso já é algo. Quer queira eu ou não. Bom ou não. Algo. E isso me vale ouro.
A quem venha a me chamar de egoísta ou narcisista, por esse texto, a princípio, ser um texto sobre mim. De fato, falo de mim. Quero falar de mim. Um mim expandido que ninguém fala. Mim tantas. Mas diferente dos que se valem da terceira pessoa, assumo a impossibilidade de falar do outro com propriedade. A propriedade é unicamente meu corpo, de resto, tomo emprestado as palavras deixadas como rastros em escritos de autoras ou autores que encontro no caminho e contam sobre o caminho outro, que não meu, mas que dentro dessa troca, a qual também proponho, se funde em alguma coisa que podemos chamar de conhecimento.
Nesse momento tenho no peito apenas barulho turbulento, pacífico e ansioso, de fundo de mar; cantado pelo brilho de quem tem coragem de olhar a superfície estando no fundo.
O tremeluzir da luz beijando a superfície d’água, onde o ser humano tem tempo limitado e reduzido, que informa rapidamente nosso limite e fim. Esse lugar onde o silêncio é quase absoluto, mas que o som se perde e vira barulho – a essência do som.
Em algum lugar, todavia, decidimos chamar o barulho de palavras e fazer dela palavra, que de tão poderosa põe as coisas à vida. Um grito diante de um penhasco que geram ecos: sou eu diante da palavra. Aqui espero fazer eco. Mas o eco não se espera, ele é uma surpresa. Acontece e surpreende; vira comoção.
Escrever é lidar com a sensação de proximidade. Um engolir. Uma vertigem. E o sensível vem no vento da lua.
É nessa hora que o caminho se mostra sem resultados, porque ele é o que resultou – ato perfeito em sua total imperfeição: ele se desdobra, e muito do que ele é vem do que se percebe depois, onde também se pisa no caminho – referencial de lá. Do mundo vivemos as lembranças. O agora já virou lembrança.
O maior receio é a certeza, pois a fuga da dúvida pode reconfortar diante da falta de coragem diante da fundura das águas; e a verdade reside lá no fundo, dentro da boca de uma ostra velha, coberta de limos e outros crustáceos; um condomínio de pequenas vidas que guardam com todo afinco a verdade da pérola; e há de quem faça das pérolas um colar.
Hoje eu uso brincos de pérola; nem sei sequer se são verdades. A verdade é que elas eram de minha mãe e por isso as deixo em minhas orelhas, próximo ao meu rosto e a todo som. Eu me olho e vejo mais de uma mulher; eu me olho e vejo apenas uma mulher.
Transcender é uma transgressão (2). É buscar o aimbo do tronco de uma árvore; o meio que não perece apesar de cortada de sua conexão com universo – seu cordão umbilical. Uma vez que somos separadas jamais voltamos à verdade de sermos nutridas pelo desconhecido processo de crescer dentro d’água.
A fundura das águas é a única verdade, e por isso também uma angústia, pois da verdade nunca somos dadas a saber do todo. Sabemos da verdade o que o tempo permite; e o tempo essencialmente muda.
Notas:
(1) LISPECTOR, Clarice. Água Viva.
(2) LISPECTOR, Clarice. GH, pg. 81.
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Rapha Dutra.
Baiana, artista visual, fotógrafa e performer, mestranda em Processos Criativos pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, onde desenvolve pesquisa sobre gênero, memória e afeto dentro do recorte da travestigeneridade, com foco na perspectiva de estudo sensorial de corpo.