por Mariola Mourelo

Neste artigo falaremos sobre a “velhice” nos coletivos ativistas, compreendida como tal o estado de certa maturidade e reflexão à que tanto as pessoas quanto os projetos chegam por si próprios após um tempo indefinido de experiência e vida construída em comum.

Não sendo uma situação idêntica para todo o feminismo organizado, uma característica que nos pode colocar nesse lugar de “maturidade ativista” a caminho da feliz velhice, é aquela em que o projeto já tem tido um acúmulo de experiências, ultrapassado desafios, atingido resultados favoráveis e desfavoráveis, e conseguido, nesse processo, um certo alinhamento entre a ideia inicial e a realidade da prática.

Porém, não falaremos aqui de projetos que finalizam porque já cumpriram a sua missão, e não faz sentido para eles prolongar uma ação ou torná-la noutra diferente de jeito nenhum, e também não nos referimos àqueles que tendo tentado, não conseguiram e desistem. O nosso foco estará nos coletivos feministas cuja ação e estratégia de transformação coletiva têm possibilidades de futuro e há um sentimento e desejo geral de continuar – se não por todas as pessoas integrantes, por aquelas com energia suficiente.

Considero que esta é uma reflexão importante a fazer no mundo ativista em que costumam destacar-se aqueles ativismos jovens, enérgicos e de ponta, mas nem tanto aqueles que, tendo sido por acaso iniciados nesse modelo, dispõem da capacidade de ir além dessa juventude e contribuir para a nossa comunidade noutros formatos e tempos.

Apesar da sua relevância, a questão a abordar aqui não será tanto o desejo e intenção em progredir, porque esta pode ser verdadeira e compartilhada pelo grupo, mas o que é preciso que aconteça para materializar a entrada nessa nova fase.

Comecemos, pois, tomando como exemplo a Revirada, revista feminista criada no ano 2015 por um grupo de 3 pessoas como projeto informal. No decurso de 6 anos vai conformando a sua identidade, projeção externa e organização interna, produzindo-se transformações significativas no sistema e equipa de trabalho, e na comunicação e relação com as colaboradoras e leitoras. Chega assim ao ponto em que a revista encontra o seu papel no ativismo comunitário feminista com um público e um funcionamento que permite tirar o máximo proveito dos recursos e capacidades da ideia posta em prática.

O projeto está, portanto, em situação de ter continuidade, podendo mesmo crescer e alargar a sua projeção ou âmbito de ação e pensamento. Chega então o momento em que pode ser útil fazer-se as seguintes perguntas para planificar uma nova etapa:

O que é que queremos fazer? Como queremos que este projeto progrida daqui a 5 ou 10 anos, ou talvez mais tempo? Quem acompanhará e com que energia esta nova fase? Em que medida temos tempo de qualidade para este projeto comunitário? E, talvez a parte mais importante, como é que queremos e podemos fazê-lo? Que ferramentas e estrutura organizativa vão ser as mais úteis para conseguir os nossos objetivos, e cuidar das pessoas que vão ser parte do projeto?

O que é que queremos fazer?

Antes de tudo, devemos ter clareza sobre os objetivos a atingir nos próximos anos, que este passo que damos seja firme e com uma visão comum que nos motive a investir o nosso ativismo num projeto contundente e compreensível.

Pode vir já marcado com a sua trajetória, ele próprio pode estar-nos a demandar uns avanços e passos específicos, ou ter de ser estabelecidos precisamente nesse momento de inflexão entre o passado e o que queremos que seja o futuro. A chave nesta parte do processo é sem dúvida uma comunicação aberta e sincera.

Seja consolidar o projeto, fazê-lo mais estável e calmo, ou ampliar linhas de ação e assumir novos desafios, ou uma combinação de ambas, terá de ser feito de forma consciente e em coletivo.

Não interessa que haja uma pessoa com as ideias muito claras, se ela não for compreendida nem seguida pelo resto do grupo. Assim como quem não se responsabiliza por fazer uma reflexão interna conjunta, e prefere delegar por sistema tarefas que vão ser fundamentais para cuidar do projeto e das pessoas que participem dele.

É, portanto, a consciência sobre o que é o projeto de uma forma tanto organizativa como de projeção externa que deve ser explorado e partilhado, assim como também uma responsabilidade individual em analisar em detalhe as implicações das diferentes propostas possíveis para o projeto, e daí fazer a própria contribuição para construir o caminho coletivo.

Quem acompanhará e com que energia esta nova fase?

Decerto, o motor de todo projeto são as pessoas e portanto, é fundamental saber que mãos vão arar nesta nova fase também.

Já experimentei – tanto nos grupos próprios como naqueles que facilitei – que nem sempre é fácil chegar a termos com o lugar real que ocupa o ativismo na nossa vida.

Recordemos que estamos a falar, habitualmente, de trabalho comunitário não remunerado, o qual, embora seja um fator fundamental ao proporcionar uma sensação de liberdade para a experimentação, exposição de ideias e posicionamentos políticos na margem e longe de outros mecanismos integrados no sistema, também coloca limites ao compromisso que pode ser dispensado ao projeto, especialmente no médio e longo-termo.

O desejo, motivação e afeto podem ser altos, e não termos dúvidas a respeito da nossa conexão com os valores e visão que se representam, mas pode-se entrar em séria contradição com o tempo real e energia para dedicar-lhe, e em que nível de prioridade será colocado em relação ao resto da nossa atividade.

Honestidade e realismo sobre a nossa disponibilidade com o projeto vai ser uma tarefa difícil, mas necessária, que ao ser partilhada com as nossas companheiras vai dar maior clareza e consciência grupal sobre os passos a dar neste novo caminho.

Como é que queremos e podemos fazê-lo? 

Ter objetivos claros e comuns, e uma equipa de pessoas comprometidas com o projeto, com dedicação de tempo e energia constante e suficiente para a sua sustentabilidade não são coisas que cresçam como cogumelos numa manhã de outono. É necessário fazer com que elas aconteçam e se mantenham, e isso também vai precisar de ação, conhecimentos e tempo de qualidade da nossa parte.

Contamos, ou deveríamos contar, com uma trajetória em que a organização interna tenha sido assumida por diferentes pessoas, e diferentes formatos, proporcionando-nos uma perspetiva mais realista do que são as nossas fortalezas e fraquezas na prática. Portanto, agora seria focar naquilo que faz mais fácil e fluido o nosso trabalho, e procurar alternativas para aquelas partes que, sendo talvez enfadonhas, mas necessárias para o dia a dia do projeto, precisam de melhorias para podermos seguir em frente.

De facto, em muitos casos a etapa de maturidade vai implicar em si mesma uma autorrevisão das tarefas precisas para o projeto existir e como estas são distribuídas entre as pessoas participantes. É claro que o nosso feminismo horizontal não nos exclui de ocupar papéis de poder nos relacionamentos internos, seja por ter mais ou menos experiência, tempo no projeto ou por questão de personalidade, estilos de vida, origem, etc. Vai ser inevitável e mais pragmático, reconhecer estas diferenças na nossa interação e implicação para poder idear conjuntamente e com clareza como é que iremos trabalhar juntas e de que ferramentas e estruturas precisamos para fazer a nossa atividade mais ágil e cuidadosa.

Poderíamos começar por um princípio básico já utilizado no âmbito dos estudos de género e feministas e que podemos adaptar para o contexto dos projetos ativistas, o modelo dos 3 R de Diane Elson (2008):

  • Reconhecer: Visibilizar os cuidados, o trabalho reprodutivo de organização e sustento do projeto, e quem o realiza.
  • Reduzir: Aligeirar a carga de trabalho quando esta está a afetar a saúde e o bem-estar das pessoas.
  • Redistribuir: Partilhar as tarefas produtivas e reprodutivas de uma forma equitativa, consciente e cuidadosa.

Felizmente, temos a possibilidade de utilizar para a nossa ação feminista os recursos teórico-práticos gerados com base na análise sobre a desigualdade de géneros, e neste caso, em específico sobre a divisão sexual do trabalho. Porque embora a reflexão sobre o espaço público, privado e doméstico, sobre o trabalho produtivo e reprodutivo, e portanto aquele que é valorizado, visibilizado e remunerado e aquele que não o é, nos tenha colocado na disposição de ultrapassar estereótipos e modelos económico-vitais machistas, às vezes nós próprias esquecemos a importância de ambos, da sua inevitável interrelação para não só ser efetivas e cuidar do nosso projeto, mas também de nós próprias.

Modelos organizativos possíveis

Uma vez refletido sobre tudo isto, estamos em posição de considerar que modelo organizativo é o que mais se adequa às nossas necessidades e às do projeto.

Abordaremos brevemente três opções, das que poderíamos fazer todo o tipo de combinações e inclusive, e esperançosamente, criar outras totalmente diferentes das aqui expostas.

Autogestão:

O projeto é gerido pelas pessoas participantes de forma direta, livre e voluntária. O financiamento costuma ser autónomo e independente de organismos públicos ou privados que podem cortar ou incidir nos posicionamentos políticos ou tomada de decisões do coletivo.

  • A favor:
    • Liberdade e autonomia para criar conteúdos, gerir tempos e entrar e sair no projeto à vontade.
    • Permite, e mesmo espera-se nela, uma gestão não hierárquica e tomada de decisões democrática e em assembleia.
    • Baixa ou não existente burocracia administrativa.
  • A ter em conta:
    • Instabilidade. Depende do compromisso das participantes, tendo que competir com o trabalho remunerado, e prioridades afetivo-emocionais e pessoais que podem mudar com o tempo.
    • Conflitos entre a não liderança e a necessidade de coordenação do projeto. Produzem-se vazios de poder e inatividade.
    • Limites na divulgação do projeto em âmbitos não ativistas, e no financiamento comercial e institucional ao carecer de forma jurídica reconhecida.

Associação:

Forma jurídica pensada para a regularização das organizações sociais que está gerida formalmente por um Conselho Diretivo e onde as sócias podem participar na tomada de decisões através das Assembleias. Podem contar com financiamento público e privado de forma específica e regulada.

  • A favor:
    • Provê de uma estrutura formal que pode ajudar a consolidar o projeto, mas com flexibilidade suficiente para se adaptar à realidade da sua atividade e valores.
    • Consta de umas normas básicas e jurídicas na forma de estatutos em que são legitimadas e visibilizadas as pessoas coordenadoras/cuidadoras como conselho diretivo, mantendo o sistema de assembleias em que todas as sócias têm voz e voto.
    • É uma forma jurídica reconhecida para impulsionar a divulgação e financiamento do projeto com fundos privados e públicos.
  • A ter em conta:
    • Requer de um compromisso mínimo de pessoas com tempo, energia e que priorizem o projeto a um nível médio, mas não garante a remuneração económica para as pessoas cuidadoras.
    • A existência e legitimação jurídica de um conselho diretivo pode criar conflitos de poder, e também pode haver uma excessiva delegação de poder das sócias. Precisa-se de um bom sistema de rotação e consciência de poder coletivo.
    • Implica um incremento de carga burocrática e administrativa para cumprir com os requerimentos legais da associação, financiamento privado e de ajudas públicas. Isto, em casos, pode chegar a entrar em conflito com a independência e princípios do projeto.

Projeto sociolaboral: cooperativa e similares

São entidades de pessoas, com forma jurídica, que em base aos princípios colaborativos se unem para satisfazer as suas necessidades económicas, culturais, sociais, etc. Gestão delegada no Conselho de Administração, podendo as sócias participar na tomada de decisões na Assembleia. Financiamento através da sua atividade económica, assim como acesso a recursos públicos e privados.

  • A favor:
    • Oferece uma estrutura organizada, sólida e jurídica baseada nos princípios de cooperação e ação solidária, com opção de ser denominada “com ou sem fins lucrativos”, onde as pessoas sócias podem conciliar o seu ativismo com atividades profissionais remuneradas.
    • Como na associação conta com uma legislação que determina procedimentos e responsabilidades e direitos para pessoas sócias e Conselho de Administração, mas o nível de compromisso também está legislado, o que permite uma maior clareza sobre a participação esperada no projeto.
    • O cooperativismo conta com redes de apoio profissional e social fortes, uma valorização progressiva no âmbito socioeconómico, e uma série de benefícios fiscais e de ajudas institucionais que podem contribuir para uma melhoria no seu sistema de financiamento, divulgação e projeção.
  • A ter em conta:
    • É muito importante realizar um processo cuidado de ideação e planificação entre as pessoas integrantes onde estabelecer uma visão, valores e objetivos comuns claros e definidos, ao mesmo tempo que fazer um estudo de rentabilidade do projeto.
    • Costuma implicar um investimento médio-alto de tempo, energia e mesmo económico, assim como na escala de prioridades das pessoas participantes, em particular das que fazem parte do núcleo central de trabalho e/ou Conselho de Administração.
    • Incrementa consideravelmente a carga burocrática obrigatória, a atividade económica ganha uma relevância que pode submeter outros aspetos do projeto, e faz-se necessária a assistência de serviços profissionais internos e/ou externos para poder cumprir com elas.

Com certeza, o conhecimento dos diferentes modelos organizativos, junto com a nossa prática e experiência ativista oferece-nos a possibilidade de explorar com consciência os diferentes caminhos que podemos tomar como projeto comunitário.

O princípio da reciprocidade [conclusão]

Como resultado do exposto concluímos que podemos e devemos avaliar formas jurídicas ou modelos organizativos e económicos que nos permitam permanecer na nossa atividade de uma forma efetiva, útil e cuidadosa, porque realmente este país – a Galiza – precisa de uma rede de projetos que nasçam da autogestão, da rebeldia, e que continuem a realizar o seu labor com independência e autonomia.

Evidentemente, a passagem à maturidade não quer dizer necessariamente uma transformação radical do que estivemos a fazer até o momento, pode e com frequência deveria ser uma continuação, rumo à consolidação e sustentação do nosso ativismo. Precisa, isso sim, de uma reflexão profunda e honesta de como nos relacionamos, como gerimos e organizamos o trabalho reprodutivo e de cuidados internos, como é a sua interrelação com o trabalho produtivo e de projeção pública, e como financiamos a nossa atividade seja com recursos humanos ou monetários. E tudo isto da perspetiva feminista.

Nós, que participamos e desfrutamos dele, sabemos que o ativismo – em específico o feminista –, o trabalho em comunidade em geral, proporciona um espaço para muitas de nós sonhado, um lugar onde nos encontrarmos, onde nos sentirmos menos loucas e mais juntas, onde expressarmos a nossa raiva, tristeza e medo partilhando caminhos e sentindo-nos parte de uma comunidade afim.

A questão é, até que ponto iremos comprometer a nossa vida individual para nos assegurarmos de que este espaço coletivo, altruísta, não-(suficientemente)-remunerado, possa existir, fortalecer-se e continuar a ser um lugar cuidado e poderoso em que nos apoiarmos e até nos refugiarmos desse outro mundo do qual desejamos criar alternativas.

____________________________________________________

Mariola Mourelo

É ativista feminista, a participar na atualidade na equipa editorial da Revirada, revista feminista, e em Aselafem (Associação de Estudos Laborais Feministas), fotoeducadora com o projeto ffotoeduca, educação feminista a través da fotografia participativa, e facilitadora de grupos no projeto individual Grupos á Deriva, e na cooperativa 50pés consultoras para o emprendimento da perspetiva social, integral e da economia feminista. Mora e trabalha na Galiza.

www.mariolamourelofacilitacion.wordpress.com

www.50pesconsultoras.com;

www.ffotoeduca.com;

IG:  @ffotoeduca @50pesconsultoras

FB: @ffotoeduca @gruposaderiva @50pesconsultoras

 

Este site usa cookies próprios e de terceiros para o seu correto funcionamento e fins analíticos. Ao clicar no botão ACEITAR, você concorda com o uso dessas tecnologias e o processamento de seus dados para esses fins.   
Privacidad