por Rapha Dutra

Esse mês voltei temporariamente para casa de meus pais. Vim para que eu pudesse dar entrada na retificação dos meus documentos, em um movimento que me põe no lugar onde o tempo conversa comigo em idioma criptografado pela memória.

Nesse espaço morou um corpo de consciência tão inconsciente que as vezes me atrapalho em chamá-lo de outro — erro meu.

Corpo sempre tive um, não conhecê-lo e nem ser apresentada a ele, no entanto, foi o desafio.

Habito a carne de sempre, inevitavelmente, com mudanças, mas ainda assim a mesma matéria que nasceu 06 de junho de 1994. Mas faço um alerta de imediato quanto à minha incapacidade de nomear essa sensação de renascer na mesma carne, que também se apresenta a esse corpo e dá a sensação de ser outro, outra.

E tá aí o obstáculo da palavra: como falar da imprevisibilidade do caminho sem cair no ineficaz uso do termo “novo”? O que seria o caminho senão intrinsecamente novo?

Se ao andar o mundo sai do lugar, o estar aqui em algum momento é o outrora dito horizonte e lá na frente está o que nem sequer é possível imaginar; ou melhor, o que só é possível imaginar, e por isso impossível saber até a fatalidade do amanhã. Afinal, o que resta senão o passo? O movimento físico de ressignificar o mundo com o corpo já que jamais voltamos a fincar os pés no lugar da partida.

Sinto que aprendi uma coisa, o que não garanto ser a verdade, pois a verdade ninguém pode garantir, mas posso chamar de minha verdade: antes de um endereço, há um corpo que perigosamente se locomove e é locomovido; e a comoção, palavra dentro da palavra ‘locomoção’, é inevitável tal qual respirar — inclusive respirar é uma comoção.

Meu corpo é uma casa constante, nova e eterna, presente e também, nos seus termos, passado; e tem sua coisa comprovada na sensação de sem casa fruto da constante locomoção.

Foi ao sair da beira-mar e ir pra encruzilhada de São Paulo que atinei que não existe para mim alvenaria capaz de determinar fronteiras para me dizer “casa”, mas que talvez as memórias antigas e recentes fossem capazes, afinal tudo é construção e já é ruína.

E por isso, falando sobre a Av. Beira Mar, sinto que tudo aqui parece fragmento: a mesa do café, por exemplo, remonta hábitos da infância ao lado de minha avó; o quintal abaixo da aroeira as lembranças do segredo, onde muito do que ninguém poderia ver está nas cascas dessa árvore cuja existência é tão longa quanto a minha memória; e o mar, em toda sua exuberância salgada, é a manifestação constante de que tudo é muito mais.

Nesse cantinho do quintal, sob o pé da aroeira, especialmente, foi onde conheci minha nudez. Não aquela que mostra o corpo, ordinária e comum, e até as pessoas mais pudicas são obrigadas a fazer no banho. Eu conheci minha nudez de ser a minha vontade.

Costumava quando criança em minhas brincadeiras fazer da camiseta um cabelo longo, por exemplo; do tecido do campo de botão um vestido; dos tijolos pequenas sustentações para saltos; brincava mais com bonecas e deixava os bonecos de lado, disfarces caso alguém chegasse; e dessa forma vivia ali a minha chama, o que me enchia os pulmões — indícios e pistas da casa-corpo ou corpo-casa.

Digo indícios porque nada disso é o que determina ser mulher, mas é o que determinam para as mulheres e eu sempre fui uma.

Dentro da violência normativa, a minha vivência foi a de que: enquanto uma mulher lida como homem, não poderia ser mulher; e ao tentar reivindicar minha feminilidade, ser violentada pela opressão da imposição de uma feminilidade diretamente vinculada à estrutura patriarcal.

Mas, de qualquer forma, os segundos naquele lugar eram mais valiosos que ouro e diamante de tão preciosos. Para mim era o que justificava estar experimentando esse mundo que nos faz chorar na hora que a gente sai da barriga, pois ali era mundo. Um mundo escondido, apenas para mim. Tanto que não a toa que foi meu primeiro vício — o mistério.

Infelizmente, porém, tive que aprender a ser desconhecida pelos outros para poder ser conhecida por mim.

Até tornar-me uma verdade fui educada a me negar; sendo o amor, ou melhor, a perda do amor, a grande ameaça por trás de tudo. O amor está sempre na corda-bamba de sombrinha e parece que para corpos que ameaçam uma normativa, ele é uma arma usada para conter as revoluções contidas na possibilidade de ser

Só que a insatisfação, essa coisa que cerca a verdade proibida, demanda, uma vez que damos o dedo, o braço, perna, tudo, até conseguir o corpo inteiro. E quando estamos insatisfeites com algo que não resolvemos, aprendemos que sempre existe um peixe-grande-insatisfação maior no aquário, pronto para comer tudo.

Dos minutos escondida brincando passei a querer as horas; em uma família grande as horas passaram a ser impossíveis, então quis o silêncio das manhãs; mesmo assim a rotina tornava difícil contar com esses momentos exceto nos fins de semana; de modo que passei a fingir estar doente para faltar aula, voltar para casa e ficar só, mas não seria possível concluir a escola assim, nem deixar de levantar suspeitas graves sobre minha saúde, que, inclusive, por sorte e azar foi verdadeiramente frágil na infância.

Parece óbvio hoje, né? Eu precisava de mim inteiramente e integralmente. Mas não dava, parecia não dar. “Ser” parecia impossível.

Quando criança e adolescente, sonho constante ao dormir era o de cair diante de uma escada e não ter força para subir e viver o sentimento frustrante de estar caída.

Mas, nesse cenário, encontrei uma possibilidade: Margarita.

Formada de um tubo PVC de diâmetro médio, com uma mamãe sacode enfiada e um lápis que fazia calço para que a mamãe sacode formasse uma bela cabeleira na altura que eu quisesse, Margarita era muita coisa.

Aquela figura que ninguém entendia, em minha verdade, era desconhecidamente uma projeção — e digo isso sem nenhum diploma de psicóloga.

A todo lugar que eu fosse, Margarita precisava estar. Eu conversava com ela; criava cenários fantásticos para ela viver; vislumbrava um eu-ela muito mais interessante de tudo que era possível para meu corpo de carne e osso.

Em uma história engraçada uma vez, minha mãe colou um rosto de uma modelo da revista Avon que ela revendia — o maior chilique da minha vida. Aquele não era o rosto de Margarita! E quando questionada sobre “qual era o rosto de Margarita?”, respondia com um silêncio de fachada para que não houvesse insistência. Imagine só, contar o meu segredo?! A mudez dispersa me resolvia temporariamente.

Margarita durou anos em minha vida. Acredito que tenha surgido aos 7 anos e me acompanhou até 12 anos, quando a vida apresenta formalmente sexo e papéis são impostos aos corpos dentro da lógica binária, genital e cisgênera da coisa. Ali, para um dito menino, não era possível a companhia de uma boneca, aliás, já era uma contravenção grave, daquelas que sempre gerou “dúvidas” na família, ter chegado até ali, imagine só continuar.

Sem forma de PVC, sem mamãe-sacode e sem lápis, Margarita perdeu corpo. Virou uma ideia, uma memória, um soterrado. Essa foi a hora que o muro chegou, e eu me esborrachei. A ladeira abaixo foi inevitável e não ter referência de um corpo possível para chamar de meu, um vocabulário inexistente para poder refletir possíveis saídas e uma constante sensação de que amanhã não valia a pena, me levaram ao meu pior.

Conheci o fundo e a escalada de lá custou calos que respeito e admiro, mas que não desejo a ninguém. Mas ao chegar aqui em cima, para minha surpresa, Margarita estava viva.

Ela, inclusive, esse mês voltou temporariamente para a casa dos pais. Veio para que pudesse dar entrada na retificação dos seus documentos, em um movimento que a põe no lugar onde o tempo conversa com ela em língua criptografada pela memória. Mas que no final, vai ter em papel, registro e reconhecimento, seu nome escrito: Rapha Matheus Dutra Santos.

__________________________________________________________________________

Rapha Dutra.

Baiana, artista visual, fotógrafa e performer, mestranda em Processos Criativos pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, onde desenvolve pesquisa sobre gênero, memória e afeto dentro do recorte da travestigeneridade, com foco na perspectiva de estudo sensorial de corpo.

 

Este site usa cookies próprios e de terceiros para o seu correto funcionamento e fins analíticos. Ao clicar no botão ACEITAR, você concorda com o uso dessas tecnologias e o processamento de seus dados para esses fins.   
Privacidad