por Daniela Filipe Bento
Uma viagem pelas entrecruzadas da minha memória identitária.
Eram manhãs cinzentas. O nevoeiro estendia-se por toda a área que antes era visível. Um nevoeiro cerrado, denso, pesado. Eram manhãs cinzentas e nem os meus pés conseguia ver. O nevoeiro estendia-se e pegava-se a mim, como roupa dilacerante. Esta roupa que me apertava o coração, que me vestia de cinzento, que me saudava na invisibilidade. Um chão desaparecido, entendido como fruto caído e perdido.
Dou dois passos, não sinto o que piso, pareço-me flutuar, diabolando pelas correntes de ar que sustentam esta manhã, não sinto controlo, o meu corpo deixa-se levar, os meus passos passam a ser três, quatro, cinco… Dou por mim a gritar um som mudo, abafado pelo frio e pela solidão.
Não sei que horas são, que dia é, que ano é. Não tenho noção do tempo que passa, sei apenas que não me lembro de aqui ter chegado. Procuro nos bolsos o relógio, não existem bolsos, não tenho roupa. Estou só, encharcada no nevoeiro e sem qualquer referencial. Estou… estou… perdida.
Movo-me para os lados, procuro encontrar um espaço para além desta bruma, continuo a navegar sem fim à vista, continuo a navegar sem saber por onde e para onde vou. O que faço aqui? Como vim aqui parar? Como saio daqui? Perguntas e mais perguntas que me conectam com a minha existência, uma existência sem memória, fechada em círculos e desconectada do meu corpo, da minha essência, do meu núcleo primário. Continuo numa voz perdida a gritar, o silêncio responde-me com a sua dureza.
Não sei quanto tempo passa, apenas sei que me sinto à mercê. Sem controlo, sem capacidade de decidir, as minhas decisões são dobradas em pedaços pequenos de papel que desaparecem no meio das gotículas.
As minhas acções são como um braço invisível acenando, tentando ser visível para alguém.
Sinto-me cada vez mais apertada, sem espaço, a pele queimando do frio e dilacerada de dor.
Procuro sentar-me e fechar os olhos. No meio do vazio, ainda me é permitido sentar. Fecho os olhos e procuro nas minhas memórias, procuro o calor e a proximidade, procuro as árvores e as montanhas, procuro a praia e o vento. Procuro. Procuro-me também a mim. Um eu tendo calor, a passear nas montanhas e a tomar banho na praia. Procuro-me a mim. Procuro reconhecer-me nessas vivências. Apago a bruma do meu pensamento e fico sentada a escutar o vento, a sentir o quente da praia. Deixo-me ficar, assim, tentando-me transportar para outro lado, para o lugar do sonho.
Levanto-me e fico à escuta, continuo de olhos fechados. Não quero deixar de sonhar. Porém, preciso trazer-me de volta, do sonho e deste nevoeiro cerrado, preciso voltar a ver o mundo, preciso reconquistá-lo. Preciso conquistar o meu lugar, a minha voz. Como traços perdidos, preciso voltar a comunicar, a significar e a resignificar o meu estar. Preciso voltar a ter controlo sobre quem eu sou, sobre o meu caminho. É nesse espírito que respiro fundo, decido. Levanto os braços e deixo o ar passar por entre os dedos. É por ali. Assumo, garanto-me. Não sei que dificuldades se levantam, mas vou. É aquele o meu caminho, mantenho os braços no ar para me conduzirem.
Ando, ando muito. O nevoeiro não se vai embora, mas vai ficando cada vez mais escuro… está de noite? Começo a sentir pingos caírem-me pelos braços… Aqui há um tecto, um túnel, talvez… Continuo a andar. A bruma fica menos densa, mas o espaço fica gélido. Caminho, caminho muito. Não sinto cansaço, a energia invade-me o corpo. Começo uma espécie de corrida neste chão vazio. Enquanto corro, enquanto permaneço com as mãos no ar, vou-me reconhecendo. O meu corpo começa aos poucos a aparecer.
Vejo-me, consigo ver-me. De forma inconsistente, mas consigo ver-me, consigo, saboreando cada pedaço do meu corpo, cada pedaço do meu eu. O túnel fica estreito, corro ainda mais, é altura de lançar-me com toda a energia. Aposto tudo o que tenho, quero sair deste túnel, desta incerteza, deste mau estar. Quero ver o olhar do sol, o sorriso das árvores e cheirar as rochas. Quero. É com as mãos que procuro o meu coração e o apalpo, quero fazê-lo ganhar vida novamente, uma nova vida, um novo nascimento. Dou-lhe movimento, estímulo-o, ele começa a bater. O nevoeiro desaparece.
Estou numa clareira, nua, sem dores, os meus pés na terra, o sol brilha e as árvores dão sombra. Deito-me e interiorizo que estou viva, estou viva e mais consciente de mim. O meu coração palpita, não parou. Não o consigo agarrar novamente, está protegido, a minha pele volta a ser visível. Não quero adormecer porque tenho medo de estar num sonho bom. Não quero acordar e enxergar novamente o vazio. Fixo bem onde estou. Conto as árvores, gravo mentalmente todo o espaço circundante.
Aos poucos vou sentindo os pés, as pernas, o tronco, as mãos e os braços… aos poucos a minha memória retorna a mim, mas… mas vem de forma diferente. Não sinto o seu peso, não sinto a sua dor, nem a sua loucura. A minha memória retorna, retorna de uma outra perspectiva, de um outro olhar.
Já não estou no centro das suas mágoas, já não estou na periferia da sua felicidade. Estou onde devo estar, em todo o espaço. Ocupo o meu lugar. Ocupo…
Como um céu de trovoada, a minha mente ilumina-se em clarões, pedaços de certezas e continuidades nas incertezas. O som demora a chegar, mas chega. Chega-me de forma melódica, chega-me música.
Já não sei contar o tempo, não sei quanto tempo passou desde que flutuei no nevoeiro, quando nada ultrapassava aquela bruma. Sei que saltei para a frente e agora estou aqui. Sei que saltei para a frente e me descobri e redescobri. Chega-me a imagem de que tive vida, de que vivi e de que estou viva e não apenas sobrevivida. Chegam-me as sensações de uma memória que não se perdeu, que continua viva. Um sentir que me completa, que me dá coerência e que me encanta.
Porque sendo eu, eu sou.
______________________________________________________
Daniela Filipe Bento
Natural do Cartaxo, Portugal, aos 18 anos embarca numa viagem até Lisboa onde inicia a sua exploração identitária e política. É aqui que se descobre dissidente em vários eixos identitários, contestando e provocando as normas sociais vigentes que atuam na transversalidade da vida.
Vem participando em vários debates, palestras e rodas de conversa procurando sempre um debate crítico e construtivo desde uma perspectiva interseccional e transfeminista.
https://www.overdestiny.com